Discriminação por orientação sexual e o amparo legal e jurídico
Assim reza nossa Carta Magna:
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. (Brasil, 2005).
Entretanto bem se sabe que, na prática, não é isso que acontece. Há pessoas que, por possuírem e adotarem determinadas condições de existência e expressão de sua sexualidade, como no caso da orientação sexual homossexual, são tratadas de maneira desigual se comparadas a outras em mesmas situações e locais, sendo vítimas de discriminação.
Fala-se em vítimas de discriminação, pois se entende a discriminação como a manifestação concreta de um preconceito contra uma pessoa ou grupo visto como desqualificado, anormal. Essa não pertença à norma ocasiona uma série de atitudes de violência física e não-física contra os “desviantes”. É o que se vê acontecer aos sujeitos que se afastam dos padrões da heterossexualidade.
Na doutrina jurídica, a prática discriminatória é caracterizada por sua contrariedade ao direito, no que fira o princípio da igualdade e incorra em prejuízos àqueles que são tratados com tal distinção (RIOS, 2007). O mesmo autor traz outra definição de discriminação, elaborada no direito internacional dos direitos humanos, redigida da seguinte maneira na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher2 e na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial:3
[…] qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo, ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural, ou em qualquer campo da vida pública (RIOS, 2007, p.38).
Sendo a orientação sexual homossexual o desencadeador dessas atitudes discriminatórias, costuma-se designar tal prática como homofobia. Segundo Pocahy (2007, p. 11), a homofobia se refere a “todas as formas de desqualificação e violência dirigidas aos que não correspondem ao ideal normalizado de sexualidade [a heterossexualidade]… uma manifestação arbitrária que consiste em designar o outro como contrário, inferior ou anormal”.
Daniel Borrillo (2005, p. 1) define homofobia como
um sistema a partir do qual uma sociedade organiza um tratamento específico segundo a orientação sexual dos indivíduos. A homofobia concede à heterossexualidade o monopólio da normalidade e fomenta, encoraja o desprezo àqueles que se afastam de tal modelo de referência.
Entendendo-se, então, a homofobia como uma discriminação, e esta como uma forma de prejuízo e/ou supressão de direitos e liberdade, assim estará caracterizada uma atitude homofóbica independentemente da intenção explícita desta. Deste modo, podemos pensar em duas formas de discriminação: direta e indireta. Não nos estenderemos aqui na definição destes dois fenômenos, sendo que suas apresentações nos valem para ressaltarmos tanto a evidência como a sutileza da discriminação sofrida pelos homossexuais.
A discriminação direta é aquela que é efetuada deliberadamente e que mais claramente se identifica, por exemplo, na obstrução do acesso a um local público a uma pessoa identificada como homossexual; ou no fato de esta ser preterida em uma vaga de emprego tão somente pelo fato de sua orientação sexual não corresponder à norma heterossexual. Ou ainda quando se adota determinado procedimento ou exigência com vistas a excluir ou prejudicar os direitos em virtude da orientação sexual como, por exemplo, dificultar o ingresso de homossexuais nas Forças Armadas.
Quando se fala em discriminação indireta, faz-se referência às ações que, embora ocorram sem a intenção de discriminar, incorrem em distinção, exclusão, ou preferência e que têm o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo, ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais, atingindo distintamente indivíduos e grupos, reproduzindo preconceitos, e construindo estereótipos (RIOS, 2007). Essa forma de apresentação da discriminação acontece pela contínua confirmação e manutenção da hegemonia heterossexual, desprovida da vontade de repressão à homossexualidade. Ela nos evidencia a supremacia da ordem heterossexista que, naturalizada, coloca qualquer outra forma de expressão da sexualidade em um lugar de inferioridade. Verificamos, por exemplo, esse tipo de comportamento discriminatório quando um aluno é encaminhado para atendimento psicológico por apresentar atitudes com conotação sexual dirigidas a colegas do mesmo sexo, sendo tais atitudes consideradas inadequadas no ambiente escolar. Por que não houve o encaminhamento de meninas adolescentes que começassem com namoricos com meninos?
Diante do exposto, fica evidente que a discriminação por orientação sexual se apresenta muito mais como um aspecto presente na estrutura da sociedade, tendo como consequência a construção das práticas e volições discriminatórias individuais, e não o contrário. Por isso o enfrentamento à intolerância fundada no desejo sexual deve se dar em um nível estrutural e institucional, de forma que produza transformações coletivas na malha social que reproduz o preconceito e a discriminação.
Formas de enfrentamento
É no bojo dos direitos humanos que o direito tem buscado compreender e enfrentar a homofobia. Sobretudo são os direitos fundamentais que se constituem na linha de frente do combate à discriminação, amparados pelos princípios da liberdade e dignidade humana, legitimando o direito da antidiscriminação.
Vários são os documentos que servem de base para o enfrentamento da discriminação por orientação sexual, produzidos em diversas instâncias, influindo maiores e menores âmbitos de atuação.
Observando-se, já, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, lê-se:
Art. 1º – Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Art. 2º – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Art. 6º -Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.
Art. 7º – Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos tem direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Art. 12º – Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
Outros documentos de amplitude internacional, a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), relativa à Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, bem como a Recomendação 111, que trata da discriminação em matéria de emprego e ocupação, da mesma organização, colocam os Estados-membros, sendo o Brasil um deles, na obrigação de desenvolverem políticas que impeçam a discriminação no trabalho. Ainda, a Recomendação 111, em seu item 6º, afirma:
A implementação da política de não discriminação não deve prejudicar as medidas especiais destinadas a satisfazer as necessidades particulares das pessoas que, por motivos de sexo, idade, deficiência, responsabilidades familiares ou nível social ou cultural, necessitem de proteção e assistência especial (1998).
Nesse sentido, o direito brasileiro, no entendimento e enfrentamento da homofobia, vale-se da Constituição Federal, de 1988, quando esta define por princípios fundamentais da República: Art. 1º, “III – a dignidade da pessoa humana”. E em seu art. 3º, o qual define os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: “IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
No que se refere aos direitos e garantias fundamentais, o texto constitucional afirma, conforme já referido no Art. 5º, que
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Mais adiante, no parágrafo X do mesmo artigo, assegura que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Em tramitação no Senado Federal, atualmente na Comissão de Assuntos Sociais, está o Projeto de Lei 122,4 da Câmara dos Deputados, que criminaliza e define punições para a prática de discriminação por orientação sexual. Essa proposta demonstra que, além das ações afirmativas em prol da liberdade de expressão sexual, busca-se coibir e penalizar a realização do preconceito. Toda esta fundamentação legal amparada nas prerrogativas constitucionais que colocam o sexo como atributo indiscriminável, impõe-se na medida em que, conforme afirma Rios (2003), a discriminação por orientação sexual é uma espécie de discriminação por motivo de sexo, além do que a manifestação da sexualidade é um aspecto que diz respeito à privacidade de cada cidadão.
Em um continuum desse processo, observam-se tanto o princípio da nãodiscriminação, como a repressão punitiva dos atos discriminatórios, presentes de forma legislada nas esferas estaduais e municipais. Por exemplo, vê-se a Constituição do Estado do Sergipe (1989) que em seu artigo 3º, parágrafo II, assegura a
proteção contra discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idade, classe social, orientação sexual, deficiência física, mental ou sensorial, convicção político-ideológica, crença em manifestação religiosa, sendo os infratores passíveis de punição por lei.
A Lei Orgânica do Distrito Federal (1993) afirma:
Ninguém será discriminado ou prejudicado em razão de nascimento, idade, etnia, cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas, orientação sexual, deficiência física, imunológica, sensorial ou mental, por ter cumprido pena, nem por qualquer particularidade ou condição, observada a Constituição Federal.
Também no Distrito Federal, através da Lei nº 2.615,5 de 26 de outubro de 2000, bem como no Mato Grosso do Sul, pela Lei nº 3.157,6 de 27 de dezembro de 2005, ou ainda no Estado de Minas Gerais, de acordo com a Lei nº 14.170,7 de 15 de janeiro de 2002, tem-se um aporte jurídico que coíbe a discriminação, ao mesmo tempo em que determina sanções a pessoas físicas ou jurídicas que tomem a orientação sexual como fator de distinção.
No Rio Grande do Sul, destaca-se a Lei nº 11.872,8 que trata da promoção e do reconhecimento da liberdade de orientação sexual. No caput de seu artigo 1º, lemos que
O Estado do Rio Grande do Sul, por sua administração direta e indireta, reconhece o respeito à igual dignidade da pessoa humana de todos os seus cidadãos, devendo, para tanto, promover sua integração e reprimir os atos atentatórios a esta dignidade, especialmente toda forma de discriminação fundada na orientação, práticas, manifestação, identidade, preferências sexuais, exercidas dentro dos limites da liberdade de cada um e sem prejuízos a terceiros (2002).
Em nível municipal, pode-se tomar por modelo a Lei Orgânica de Florianópolis (1990) que assegura, através da Emenda à Lei Orgânica nº 004/94, “A igualdade absoluta entre os cidadãos, coibindo a discriminação por motivo de origem, raça, cor, sexo, idade, estado civil, crença religiosa, orientação sexual, convicção política e filosófica ou outras quaisquer formas”.
Outra legislação nesse âmbito é a Lei Orgânica de Macapá, que em seu artigo 7º (ANIS, 2007) afirma que
No município de Macapá, por suas leis, agentes e órgãos, não haverá discriminação em razão do local de nascimento, idade, raça, etnia, sexo, estado civil, trabalho, religião, orientação sexual, convicções políticas ou filosóficas, por deficiência de qualquer tipo, por ter cumprido pena ou por qualquer particularidade ou condição.
Em Porto Alegre, tem-se o já conhecido artigo 150, presente em sua Lei Orgânica (1990), que determina a não-discriminação por orientação sexual ou por qualquer outra particularidade ou condição em estabelecimentos públicos no município.
Esses são somente alguns exemplos9 de como tem sido entendida a discriminação por orientação sexual e que recursos em termos de legislação tem sido adotados nos diversos níveis de governo e mesmo internacionalmente, mostrando que se trata de uma questão de grandes proporções.
O programa Brasil sem Homofobia, do Governo Federal, também é prova da eficácia da organização e mobilização social. Lançado em 2004, é o resultado de um longo processo de discussão entre governo e sociedade com vistas à garantia dos direitos humanos dos homossexuais, pelo combate à violência e à discriminação de que são vítimas, e pela promoção de sua cidadania. O programa traz como princípios
1. A inclusão da perspectiva da não-discriminação por orientação sexual e de promoção dos direitos humanos de gays, lésbicas, transgêneros e bissexuais, nas políticas públicas e estratégias do Governo Federal, a serem implantadas (parcial ou integralmente) por seus diferentes Ministérios e Secretarias.
2. A produção de conhecimento para subsidiar a elaboração, implantação e avaliação das políticas públicas voltadas para o combate à violência e à discriminação por orientação sexual, garantindo que o governo brasileiro inclua o recorte de orientação sexual e o segmento GLTB em pesquisas nacionais a serem realizadas por instâncias governamentais da administração pública direta e indireta.
3. A reafirmação de que a defesa, a garantia e a promoção dos direitos humanos incluem o combate a todas as formas de discriminação e de violência e que, portanto, o combate à homofobia e a promoção dos direitos humanos de homossexuais é um compromisso do Estado e de toda a sociedade brasileira.
Nesse contexto, os Centros de Referência em Direitos Humanos assumem grande importância. Em Porto Alegre, desde 2006, no Projeto Rompa o Silêncio – Centro de Referência em Direitos Humanos, do Nuances, um convênio junto à Secretaria Especial de Direitos Humanos busca a realização de ações que repercutam socialmente na defesa dos direitos dos homossexuais, em prol da livre expressão sexual. O Centro de Referência atua oferecendo acompanhamento jurídico, psicológico e na área da assistência social, bem como oferecendo capacitações a diversos setores sociais, tais como escolas, judiciário, saúde. Ele se configura como espaço de articulação entre diversos atores institucionais imbuídos da preocupação pelos direitos humanos dos homossexuais (POCAHY, 2007). Dentro dessa proposta, o CRDH também estabeleceu um protocolo de intenções com a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, trabalhando em parceria pela não-discriminação e promoção da diversidade nas relações de trabalho.
Considerações finais
A discriminação por sexo é uma realidade que se apresenta, manifestando-se de diversas formas, em espaços micro e macropolíticos. É o resultado de um jogo de valores, poderes e saberes que a produzem e a mantêm. A exemplo disso vemos, na esfera política governamental, a resistência que sofrem muitas propostas de combate à discriminação, resistência empreitada por parlamentares envolvidos com instituições religiosas como católicos integristas e evangélicos fundamentalistas que reiteram uma visão preconceituosa da diversidade sexual.
Mas o que buscamos destacar é que a esta realidade existe também a do confronto frente à materialização do preconceito, com importantes conquistas, muitas delas no campo da saúde. A epidemia da Aids foi um disparador da percepção da necessidade de uma atenção e proteção diferenciada ao público homossexual. Nesse sentido, em 2004 foi criado, pelo Ministério da Saúde, o Comitê Técnico de Saúde da População GLBT,10 um importante espaço de discussão e articulação de políticas em que pesassem as demandas desse grupo social. Mais recentemente, o documento Saúde da população de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais traz reflexões e estratégias de ação e gestão dentro do setor saúde, considerando as necessidades específicas desta população. Esse documento é fruto de intensos debates entre governo e movimentos sociais.
Uma das repercussões produzidas nesta dinâmica é a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª região, que obriga o SUS a oferecer no seu aporte de procedimentos a cirurgia de transgenitalização. E, ainda, a determinação de que nos prontuários dos usuários conste seu nome social, pelo qual a pessoa prefere ser chamada, e não o nome do registro.
Todas as propostas e ações acima discutidas são exemplos das possibilidades de atuação dos sujeitos na luta, por certo inacabada, pela igualdade de direitos, mas mais que isso, na busca e na construção de uma cultura da diversidade, de espaços livres e dignos de existência.